Ana Campos
UM OLHAR SOBRE CONSTEL.LACIÒ:
Uma jóia que se abre ao diálogo com o destinatário
O adorno - e por extensão a jóia - pode ser interpretado como arte de transformar o corpo. A capacidade simbólica que possui de transmitir mensagens não pode ser reproduzida por outros meios. O seu uso, diferindo de necessidades biológicas como a alimentação ou a sexualidade, também não pode ser encarado com a dimensão protectora do vestuário. Os adornos comunicam, por vezes implicitamente, mensagens que não enunciamos de nenhum outro modo explícito. Transformando o corpo interligam aspectos sociais e individuais, determinam pertença e diferença, podendo estar ligados, entre outras práticas simbólicas, a rituais, feitiçaria, religião, demarcação de idade, de estatuto, distinção social, estética ou sedução, revelando sentidos e particularidades no tempo e segundo cada sociedade. Mas têm sempre, como todos os símbolos, uma força volitiva: levam-nos a agir, ainda que por vezes impensadamente, de um modo determinado.
Na civilização ocidental, exceptuando os símbolos religiosos ou os signos de distinção estatutária, cívica ou social, poderemos observar que foi sendo enfatizado o sentido ostentatório dos adornos e das jóias em particular, mas também, os da sedução e da coquetterie quer feminina, quer masculina. Do ponto de vista formal, embora seguindo referenciais estéticos pouco evolutivos, as jóias ocidentais foram correspondendo a diferentes padrões de beleza. Perdeu-se, no entanto, há séculos atrás, a consciência dos componentes metafísicos associados ao adorno. Por esta razão, se diluiu o seu esplendor interno e se reduziu o campo de eficácia, enfraquecendo-se a relação intensa e simbólica entre a jóia e o portador.
Constato, frequentemente, que neste âmbito o horizonte cultural ocidental está, até este mesmo momento presente, limitado pelas fronteiras e expectativas de uma visão do mundo dentro do qual a uma jóia corresponde um código de valores económicos e/ou estatutários em que o ouro e as pedras têm uma presença marcante, a par do preciosismo dos pormenores e da minúcia da manufactura. No mundo dinâmico de hoje, em que admitimos e desejamos, de um modo geral, dinâmica nas actividades humanas, observo quotidianamente que esta representação que construímos culturalmente sobre a joalharia mostra um aspecto do imaginário que parece estagnado no tempo.
A lógica das significações da sociedade de consumo foi contribuindo para diluir acentuadamente a relação intima entre a jóia e o portador. Tornaram-se objectos desprovidos de valor afectivo, como tantos outros de que vivemos rodeados. Os designers respondendo a valores de variados públicos alvo frequentemente condicionados pelo briefing do cliente, vão frequentemente seguindo ou fomentando desejos e representações humanas. Para certos casos, criam peças únicas ou séries reduzidas de sofisticada e ostentatória joalharia ornamentada de pedras. Para outros, podendo apoiar-se em novas tecnologias que permitem a reprodução de múltiplos, introduzem no mercado jóias “consumíveis” de prata e ouro com um baixo valor económico. A maioria destas jóias trazem apenas renovações formais mantendo, no entanto, sentidos idênticos aqueles que referi anteriormente. São signos de estatuto cívico ou social ou, como no último caso, não tendo pretensões ostentatórias dão-se a ver - tal como os acessórios de moda concebidos com materiais alternativos - como signos da efemeridade da moda salientando, talvez sedutoramente, um pormenor do corpo.
Tal como continuarei a comentar, por razões distintas (por inclusão ou reacção) os artefactos de joalharia ocidental do século XX - “a alta joalharia”, os “consumíveis” e os acessórios de moda que coexistem no presente contemporaneamente - estabelecem sempre uma relação com a mesma lógica de significações que se fixa por conjugação com valores económicos, em ligação com um imaginário em que é percepcionável o enfraquecimento da relação simbólica entre a jóia e o portador.
À semelhança do que aconteceu com outras artes no ocidente desde o início do século XX surge uma outra orientação na joalharia que pretende, através de outras retóricas, ocupar novos territórios num campo paralelo à joalharia tradicional. Sobretudo a partir da década de 60, numa atitude profundamente ligada à ideologia dessa época, certos joalheiros começaram a introduzir novos materiais nas jóias que concebiam - plásticos, metais variados, papel e tantos outros. Construindo discursos plásticos ligados a uma outra visão do mundo, pretendem re-estabelecer a relação intensa e simbólica entre a jóia e o portador. Demarcam-se, acentuadamente, dessa visão do mundo na qual o processo de significação, na joalharia, se fixa interligando o reconhecimento público de papeis estatutários com valores economicistas ligados às pedras e ao ouro utilizados na manufactura das jóias. Não partem de pré-requisitos do mercado, mas sim, da sua percepção individual do mundo que dão a ver através de mensagens poéticas e expressivamente subjectivas, ou de símbolos frequentemente cifrados. Oferecem-nas à recepção do leitor, que ao implicar-se num determinado discurso, sobre cada mensagem se interrogará e produzirá novos sentidos que advirão de interpretações individuais.
Acontece que, por coexistirem no mesmo contexto da joalharia tradicional provocam, como muitas vezes tenho oportunidade de observar, o estremecimento das expectativas dos receptores. Assim, por surpreendente que possa parecer, nesta viragem de milénio o choque que provocam é frequentemente idêntico aquele que provocou a arte moderna no início do século passado.
Os olhos humanos são fabulosos instrumentos que captam imagens indispensáveis ao pensamento. Mas na realidade, sendo a mente que as selecciona, sintetiza e relaciona entre si, permitindo-nos a abstracção, a memorização e a interpreteção daquilo que percepcionamos, fá-lo dentro de fronteiras culturais. Por esta razão vemos e retemos aquilo que nos interessa porque se enquadra num determinado mundo visível que construímos, ao qual ligamos a expressão de ideias, fenómenos, comportamentos e actividades várias que, por derivarem da forma social, nos conduzem a atribuir valor a determinados símbolos ou entender ser aceitável determinada exteriorização. Portanto, ao interligarmos as imagens que percepcionamos destas jóias com o nosso imaginário cultural, com a nossa visão do mundo, compreensivelmente interrogamo-nos, porque estas, por razões várias, não se enquadram no nosso horizonte de expectativas. O olhar como elemento de semiose está, portanto, condicionado por limites culturais.
Detenho-me num olhar mais minucioso sobre uma destas jóias: Constel.laciò concebida pelo joalheiro catalão Ramon Puig em 1996. O nome que lhe atribuiu está ligado ao sentido da mensagem poética e metafórica nela implícita. Neste signo icónico podem ler-se representações simbólicas, em que a ordem dos elementos, que pareceria natural, foi substituída. Integrou-os numa composição polifónica. Em simultâneo e praticamente no mesmo plano, mostra-nos estrelas, tanto como astros, como do mar, uma multiplicidade de luas e, sobre um fundo azul que é ao mesmo tempo o mar com ondas e o céu, interliga estes elementos com imaginárias trajectórias lineares. Estes significantes dão-lhe a expressão plástica e poética. O latão pintado, a alpaca e um revestimento de folha de prata nas luas, são os materiais com que é feita a jóia Constel.laciò. Com estes Ramon dá forma aos astros, à estrela do mar, às espirais das ondas, ao número 36 com que metaforicamente faz referência a uma coordenada de um mapa para orientação na navegação. Realça a expressividade destas formas através de cores planas e luminosas que combina com outras metálicas; as luas são revestidas de folha de prata e as trajectórias lineares são de alpaca dobrada, deixando ver marcas dos gestos, ou forjadas, mostrando, neste caso, texturas. Serão, certamente, estes significantes matéricos que deixarão maior margem para diferentes interpretações de quem se interrogar sobre este signo. Atrevo-me a adivinhar, desde já, que muitos dirão que este artefacto não é uma jóia uma vez que, tal como já referi, no mundo ocidental as jóias estão profundamente ligadas a valores económicos que Constel.laciò não inclui.
Contudo, estes mesmos significantes revelam já um conjunto de significações que, através do diálogo com o próprio Ramon, compreendi que interligam um processo que é interior e exterior, portanto, individual e social. Correspondem a fragmentos de uma realidade mediterrânea vivida junto ao mar, a olhares em arquivo na memória que Ramon não quer dissociar uns dos outros. Neste discurso poético transforma-os em fragmentos matéricos. Torna, assim, visível uma poética baseada em fragmentos e citações de memórias e de olhares. Configura-os através de um processo de trabalho no qual, agindo directamente sobre a matéria, se envolve no que o próprio Ramon denomina uma viagem de descoberta na qual metaforicamente vai fazendo alusão a objectos de orientação e de ajuda na navegação no mar: as estrelas, as constelações, os mapas, o número 36. Conjugando nesta jóia uma constelação e um arquipélago, dá a ver uma relação de semelhanças - ou de importâncias relativas - entre estes elementos aparentemente diferentes que teriam uma ordem organizada no mar ou no céu. Associando-as, mostrou a equivalência delas no seu mundo interior. Com esta atitude torna Constel.laciò polifónica, acentuando, propositadamente, a possibilidade da interpretação de quem a recebe ser múltipla.
Ramon recorre, no plano da expressão, a associações substitutivas que são características da metáfora ou à representação em simultâneo, característica das representações figurativas simbólicas. Em Constel.laciò ao mesmo tempo que esta retórica pode despertar curiosidade sobre o seu modo de pensar, sobre a sua visão do mundo, vai desvelando o processo de significação. Quando cita fragmentos de memórias e da visibilidade quotidiana sobre o mundo que o rodeia, exprime o desejo de não os dissociar na mente. No plano do conteúdo conjuga-se a implicação de uma representação cultural, emotiva e ideológica, a que estão ligados determinados valores que se associam à significação e vão fixando o sentido que Ramon quis conferir a Constel.laciò. Revela essa representação tanto por usar materiais não preciosos numa atitude que, em simultâneo, dá a ver a intenção de provocar a joalharia tradicional ocidental e o desejo que frequentemente exprime de pretender reconstruir uma relação intima e afectiva entre a jóia e o portador. Seriam, em princípio, estas coordenadas simbólicas com características metafóricas e as citações, embora sendo analógicas e não estabelecendo uma relação directa e imediata com a realidade que percepcionou, que reenviariam o leitor para um significado. Mas Constel.laciò, dando a ver uma acentuada polissemia, deixa uma larga margem de interpretação do conteúdo, não reenviando quem olha esta jóia para um único significado. Por esta razão, o sentido que Ramon atribui a esta jóia a que deu o nome de Constel.laciò - em que metaforicamente associa ícones relativos a constelação e a arquipélago - deixam margem a que diferentes leitores descubram sentidos segundos e mensagens diversas que conduzirão a outros significados continuando, assim, a parecer complexo o desvendar do processo de significação e a descoberta daquilo que levou o artista a produzir este signo.
Na realidade, esta é uma atitude intencional de Ramon. Ao pretender reconstruir uma relação simbólica (intima e afectiva) entre a jóia e o portador, deseja que se dêem actos em que, tal como numa obra aberta, tanto o emissor como o receptor tenham parte activa. Ao recorrer à dimensão criativa da metáfora e, associando-a a uma poética baseada em fragmento de memórias, utiliza dois meios que acentuam a possibilidade de criar estímulos na imaginação do receptor que, assim, lhe atribuirá um sentido individualizado. Será, como o próprio Ramon comenta, uma obra a dois, concebida por ele e completada por quem a olha.
É deste modo que Ramon pretende comunicar com quem vê Constel.laciò, desejando que quem a use se identifique com ela, nascendo afecto entre o destinatário e a jóia. Quem a usar, fazendo-a sua, vai transformá-la através do sentido que lhe atribui. Esta abertura da obra implica actos simbólicos que supõem, em princípio, actos de conhecimento e reconhecimento, mas sobretudo, actos cognitivos pelos destinatários. Para que a troca simbólica funcione entre Ramon e o destinatário, é necessário que as duas partes tenham categorias de percepção idênticas. Esta troca simbólica prende-se com um acto quase mágico, que pode depender do capital simbólico do artista permitindo, assim, uma troca de dons em que o dom deixa de ser um objecto material para se transformar numa espécie de mensagem ou de símbolo de modo a criar uma ligação social.
Terminando, farei uma muito breve ponte de ligação com o curso de joalharia da ESAD. Lembro, então, que se tem dito entre os joalheiros ligados a esta orientação da joalharia que a prática do design industrial - sujeito a parâmetros do mercado, neste âmbito, internacionalmente conservador - reduz, tanto o campo da intervenção plástica e estética, como a possibilidade de exprimir sonhos, afectos e simbologias, tal como é possível observar em Constel.laciò.
A aposta projectual e transdisciplinar que nos propomos construir na ESAD é, neste último âmbito, precisamente inversa. Consideramos que não apenas no campo da arte, mas também no do design industrial (não obstante os requisitos do mercado) é a introdução destes conteúdos - a intervenção conceptual, criativa e estética, aliada a intenções expressivas e poéticas - que permitem re-estabelecer a relação íntima e simbólica entre a jóia e o portador.
Partimos, portanto, do pressuposto de que os parâmetros do mercado desta área não englobam, ainda, estas componentes que apelam para o nosso imaginário individual e colectivo, porque tal como no início referi, entre nós há muito que perdemos a consciência dos componentes simbólicos associados ao adorno. No entanto, eles representam um valor acrescido que pode abrir novas portas ao próprio mercado. Assim, é na introdução destas coordenadas no projecto que reconhecemos um caminho de renovação e a capacidade da jóia voltar a estabelecer uma intimidade afectiva com o imaginário dos potenciais destinatários.
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