Ana Campos
Notas de Viagem
Fragmento de ensaio publicado  com o título “The adornment, the jewel and the construction of meanings”, 2004, Barcelona, Galería Hipótesis.


Ramón Puig Cuyàs, 1989. Arturet.  Broche. Prata e pintura acrílica: 14 x 4x 1 cm.



Ramón Puig Cuyàs, 1990. Marmaid. Broche. Prata e pintura acrílica: 16 x 4.5 cm.


Ramon Puig Cuyàs descreve sempre o seu processo criativo como sendo uma metafórica viagem de descoberta. A intuição e as dúvidas, a consciência e a crítica, acompanham-no nesta viagem que representa reflexão. Voltando-se sobre a sua alteridade criativa e a obra, assumindo a construção de ambas em simultâneo, interroga-se: como exprimir a sua mensagem e partilhar socialmente o seu trabalho?
Concentrando-se no papel do adorno, na sua e noutras sociedades, no presente e no passado, reflecte sobre as razões pelas quais as jóias – tal como outros artefactos produzidos no âmbito da actual cultura material – perderam capacidades de transcendência. Questiona-se sobre a clonagem de artefactos que, sendo projectados para produção em série e dirigidos a um cenário económico globalizado, se centram na dialéctica sedução/descartável. Consciente de que pretende conceber jóias com um carácter oposto, produz uma a uma na sua oficina, reunindo concepção e execução. Desejando, como todos os criadores, seduzir os fruidores, procura torná-las, como diz Calvino, “expressão necessária, única, densa, concisa, memorável.1

A palavra grega theorein subentendia saída da polis e viagem para observar e testemunhar uma cerimónia religiosa e, no regresso, contar histórias, teorizar. Para Clifford, “theory: returned to its etymological roots, with a late twentieth-century difference. (…) In the case of the Greek theorist the beginning and ending were one, the home polis. This is not so simply true of travelling theorists in the late twentieth century.”2

Reflectindo a actual arquitectura do mundo, até mesmo as teorias e os investigadores, a literatura e os escritores, a arte e o artistas, são contaminadas pelos fluxos globais. Como todos os indivíduos, são actores de contactos globais, reais e virtuais, e do nomadismo.

Neste lato espaço que habitamos, tutelado pelo neoliberalismo, em que heterogeneidade e homogeneidade se digladiam, os teóricos vivem e observam a fugacidade das mudanças sociais, as dificuldades em exprimir diferenças, as trajectórias das identidades que tomam múltiplas formas, todas fluidas e em constante edificação até se transformarem provisoriamente em ancoras, como durante um intermezzo.
Para Clifford, “theory nowadays take the plane, sometimes with round-trip tickets”. Hoje, a escrita, transformada pela mobilidade, pelas viagens, pelos contactos, será desenvolvida em algum lugar de eleição, provisoriamente alheio ao trânsito global, entre memórias em movimento.

Foram diferentes as experiências de Socrates nas suas viagens para conhecer o mundo, como também o que foi descrito em Travelling Theory por Edward Said. Mas, enquanto metáfora, a viagem, figurada em theorein, tem-se constituído elemento motivador da literatura. Italo Calvino foi um dos autores que transportou este pressuposto para a sua obra. Em As Cidades Invisíveis, Marco Polo representava o papel de explorador. Saiu do seu lugar de origem e demoradamente viajou pelo desconhecido, para descobrir localidades e o modo como viviam os seus habitantes. Voltando, foi descrevendo a Kublai Kan, imperador dos Tártaros, que o ia ouvindo entre curiosidade e entretenimento, indiferente à verdade ou à fantasia.

O mesmo acontece no campo das artes, sobretudo a partir do início do século XX, quando deixa de ser representação e testemunho da vida ou de crenças. A viagem ganha, então, variações, segundo os artistas e de acordo com o contexto em que trabalham. Viajar foi muitas vezes, meio de recepção e percepção do desconhecido, de descoberta e, se é hoje motivo para aventura turística fugaz, pode ser também, para quem observa atentamente um lugar, motivo para reflectir.

Picasso lembrou: “Não basta conhecer as obras de um artista; também é preciso saber quando é que ele as fez, porquê, como, em que circunstâncias. Talvez um dia exista a chamada ciência do homem, que procurará penetrar mais dentro do homem através do homem criador.
Penso muitas vezes nessa ciência e quero deixar para a posteridade uma documentação tão completa quanto possível.

Talvez a ciência que referiu fosse a antropologia ou a sociologia. No entanto, apesar do desejo de ser memorável, que todos os artistas sentem, e de que a sua obra fosse mais tarde estudada, as artes reflectem, sempre, o contexto social em que são concebidas. A dinâmica do tempo actual mostra que estes são factores em movimento.


Ramón Puig Cuyàs, 1998. Els Argonautes. Prata, vidro e pedras: 6,5 x 6,5 x 1,5 cm



Ramón Puig Cuyàs, 2005. Jardí de foc. Broche. Prata e pintura acrílica: 7,5 x 5 x 1,5 cm


Mas, será a arte tão volátil, como pretende Appadurai?

Considera-se hoje, como lembra Appadurai, que os objectos têm uma vida social. São entendidos de dado modo – ou modos – no contexto em que foram concebidos. Interpretações, significados e valores vão-se alterando à medida que o mundo  avança.4 O mesmo pode acontecer com as obras de arte, durante a sua viagem através no tempo. Os autores e as obras vão sendo entendidas de diferentes modos. Num curto espaço de tempo, pode oscilar o capital simbólico dos autores, o processo de significação e os valores de mercado.

Orientações pós-modernas profetizaram o fim da história e o fim da arte. Hoje questionamo-nos sobre o que é (ou pode ser) a arte no panorama em que vivemos. Appadurai considera que certos artistas, conscientes ou não, são contaminados pela transitoriedade global.
Parecendo proteger-se da corrosão do tempo e das trajectórias interpretativas adoptam formas de visibilidade efémera, tal como acontece com a action art, a performance art, a installation art, a body art, ou com as novas formas de stencil e de graffiti. Nestes últimos casos, na linha da arte social, os artistas esforçam-se por se manterem anónimos e por se afastarem dos mundos das galerias e da crítica.

Será este o único modo de acompanhar a acelerada viagem global?

Voltemos ao conteúdo da frase de Picasso. Sobretudo nas últimas décadas observa-se um namoro entre arte e antropologia. Como lembra Clifford “los limites del arte y de la ciencia (especialmente de las ciencias humanas) son ideológicos e móviles, y la historia intelectual misma está entrapada en estos desplazamientos. Sus géneros no permanecen anclados”.5 Esta frase pressupõe imaginação para acompanhar a dinâmica dos tempos, nos terrenos da arte e da antropologia. Mas outros aspectos sobressaem. No caso da arte, cada autor, ao agir sobre a matéria, dá a conhecer, também, de diferentes modos e segundo distintas orientações suas contemporâneas, a dinâmica do seu tempo e aquilo que o atrai no contexto em que se inscreve. Assim sendo, outras obras assentam em memórias que se tornam matéria ao fabricar projectos, em acções, reacções ou em desejos, que a ciência observa e estuda.

Inscritas na globalização, a arte, como a literatura, apresentam-se como campos potências para exprimir ou ficcionar sobre identidades e revelar diferença. Se a arte reflecte tantos aspectos sociais, estes salientam-se na obra de Ramon Puig Cuyàs.

Nas suas jóias observa-se a Cultura Mediterrânica e a Catalunha, como lugar de retorno. Sendo actor do trânsito global, tal como descreve Clifford, a poética da sua obra, as ideias, os processos de trabalho, estão impregnados pela sua identidade de origem, alheia de estereótipos independentistas. Aquilo que se evidencia, na sua obra é uma intensa relação afectiva e de pertença ao Mundo Mediterrâneo. Por esta razão, viajando reflexivamente, dá continuidade à sua longa herança histórica, como se realizasse uma transumância pelas memórias dos lugares, das lendas e mitos que se foram construindo em torno desde mar que o tempo e os homens tornaram simbólicos. Fragmentos desta cultura compósita, incluindo mitos greco-latinos que em tempos citou e reanimou, o que vai percepcionando no seu quotidiano e no mar, constituem, em conjunto, a paleta com que cria as jóias. Age de acordo com um pensamento sobremoderno, questionando-se sobre as consequências, na actualidade, do super dimensionamento de factores característicos da modernidade.6 Reflectindo e procurando encontrar alicerces para introduzir novas dinâmicas criativas no presente, trabalha a memória e reutiliza-a, transformando-a num material que, conjuntamente com o que observa no enredado mundo actual, emprega para construir projectos. Seguindo este ponto de vista, Ramon Puig Cuyàs entende que para fazer face às mudanças que surgem, aceleradamente, com a globalização, é necessário que nos convertamos “em nómadas da memória (…)” restabelecendo “um novo humanismo que nos ilumine para transitar pelos novos caminhos da mudança”.

Um outro aspecto, consequente do anterior, diz respeito à hibridez da sua obra. Longe de ser apenas biológica, certos aspectos híbridos, advindos de contactos humanos, reflectem-se no pensamento, na língua, nas materializações do imaginário, bem como em muitas práticas e comportamentos humanos, gerando múltiplas formas de interculturalidade. Em todos estes aspectos surge sempre o imprevisto.
A hibridez é promessa de futuro. Cada caso que se observe tem as suas características particulares, as suas razões de existência, a sua dinâmica própria.

Todo o pensamento híbrido faz a mediação entre, pelo menos, duas visões do mundo. Acontecem diálogos e confrontos, tensões ou resoluções temporárias entre dois territórios, em que nada é definitivo, nem nenhum triunfa sobre o outro. Se a identidade nunca é invariante, mas algo que se vai construindo num permanente movimento, activando cada sujeito diferentes facetas, simultânea ou sucessivamente, segundo as interacções que vai vivendo e de acordo com a sua história pessoal, se o modo de pensar é híbrido, tanto leva a viver num permanente questionamento, como o capacita para confrontar, criticar e aproveitar elementos de ambos os lados. Uma fronteira porosa é constantemente trespassada de um lado para o outro. A identidade relativa a cada uma dessas visões do mundo é praticamente tão importante como a relação que quer estabelecer entre ambas. Não significando claramente pertença, também não equivale a alteridade, mas a identidade e alteridade entrelaçadas, isto é, provoca um andamento duplo, sentimentos que tendem a associar e tentam desenredar.

Com a globalização assistimos a uma acelerada transitoriedade de sentido dos símbolos e das instituições. Há um novo tecido social em fase de produção. A grande quantidade de informação que chega até cada sujeito, através dos meios de comunicação, faz viajar virtualmente, contribuindo, tal como as viagens reais, para criar contactos e gerar novas visões do mundo. Portanto, a hibridez pode apresentar-se como via de diálogo.

Muito se tem dito sobre o carácter híbrido das culturas actuais, mas como assume a arte este carácter híbrido?

Ramon Puig Cuyàs herdou uma cultura compósita, uma rede de contactos que se estabeleceu, há séculos, em toda a bacia Mediterrânea, da qual são frequentemente citados inúmeros casos de hibridez. Diálogos entre modos de pensar e fazer, imaginários e visões do mundo, crenças e religiões, razões práticas diversas, fizeram com que, ainda hoje, possamos observar mestiçagens na configuração de edifícios e artefactos móveis, como também no modo de conjugar materiais ou técnicas de construção e produção. A própria alimentação é também um importante testemunho

A obra Ramon Puig Cuyàs, inscrita num novo cenário da joalharia, estabelece uma hibridez entre modos de pensar, projectar, fazer e agir característicos dos cenários das artes plásticas e do das artes aplicadas. Aponta para a criação de jóias que, expressando o seu carácter como autor, sejam portadoras de conteúdos especulativos e poéticos, tal como nas artes plásticas. Inclui, simultaneamente, técnicas específicas da joalharia inerentes às artes aplicadas.

Para si, nenhum destes elementos indutores da criação prevalece sobre o outro. Assumidamente, recorre a processos operativos artesanais, hoje socialmente suplantados pela sobrevalorização de sofisticados meios tecnológicos globalizados em constante evolução. Associa-os a conhecimentos teóricos e práticos ligados às artes plásticas.
Combina-os num diálogo expressivo em que a vitalidade, reflectida em cada jóia, advém da sua aptidão para transformar e criticar tanto a sua herança das artes plásticas, como a da artes aplicadas.
Simultaneamente e em íntimo diálogo durante a produção, recorre a processos ligados ao saber fazer artesanal. Interpretando e recriando, também especula sobre estes processos e múltiplos materiais, imprimindo nas jóias o seu carácter inventivo. Tornando-as expressivas, tal como fariam certos artistas plásticos, afasta-se do rigor e preciosismo da manufactura tradicionalmente ligados à joalharia ocidental.

Hoje, neste tempo acentuadamente polifónico, por se opor a retóricas de dominação, ao mostrar a sua opção por este diálogo, e por se situar numa linha de fronteira, permeável e que trespassa constantemente, não é possível incluir a sua obra numa orientação estética denominada, mas apenas na rede inter-relacional em que se inscreve, em que muitos outros joalheiros recorrem, igualmente a expressões híbridas.
Especulando e provocando interacção de processos artísticos, Ramon Puig Cuyàs introduz uma dinâmica criativa que representa o seu contributo para a invenção de um novo cenário nas artes visuais, a joalharia, arte para o corpo.

 


Ramón Puig Cuyàs, 2006. Facere Vestigium. Broche. Prata, plástico, osso, pintura de esmalte e calcite: 4,5 x 5,5 cm


Ramón Puig Cuyàs, 2007. Pretious Tempore Fugit. Broche. Prata, alpaca, plástico, ónix e pintura acrílica: 5x6 cm



Relevantes são também os temas que Ramon Puig Cuyàs escolhe nesta sua viagem do Micro ao Macrocosmos. Transportando para o presente desejos de infância, lembra que quis ser biólogo. Mais tarde, preferiu ser astrónomo. Nunca seguiu estas sonhos infantis, mas associa estas ambições nas jóias. Ficciona sobre macro-mundos em micro-espaços.

Algumas das imagens mais antigas, pode tê-las percepcionado em Miró.
Embora do ponto de vista configurativo sejam diferentes, certas jóias trazem à memória essa pintura com grafismos e manchas livres e fantásticas cheias de alegria e cor. Diria que não se trata apenas de olhares de ambos sobre o Mundo Mediterrânico – o mar, o sol, a luz, as cores –, como pretende Ramon Puig Cuyàs. Há algo mais que parece ter percepcionado em Miró, retendo uma imagem que, seguramente, não é uma réplica, mas uma interpretação. Vê-se no primitivismo da expressão plástica que adoptaram, e, sobretudo, no próprio modo como se entregam ao acto criativo, ao diálogo com a matéria. O trabalho de ambos dá a entender gestos espontâneos, aparentando que o acto criativo não teve estudos prévios. Nesta espontaneidade reside uma coincidência equivalente a algo que André Breton escreveu: “talvez não haja em Joan Miró mais que um desejo, o desejo de se entregar para pintar, e apenas para pintar”.8

Depois de uma fase figurativa, inicial, Ramon Puig Cuyàs agrupa as jóias em séries temáticas: Impressões da Atlântida, Relicários, Constelações, Arquipélagos, Marcas Cardinais e Jardins Emparedados são jóias em que há uma forte presença da cor e da luz Mediterrânicas. Em Imago-Mundi concentra-se nos contrastes entre preto e branco.

A maioria das suas jóias apresentam dualidades ou, certas vezes, aspectos que provocam surpresa ou aparentam contradições. Com esta dialéctica de reunião de opostos quer lembrar, metaforicamente, contrastes que observa nos indivíduos, na sociedade, na vida, na morte. Assim, introduziu em tempos figuras antropomórficas, associou o céu e o mar, o dia e a noite, estrelas do mar e estrelas como astros, até hoje em Imago-Mundi, contrapor presença e ausência, vida e morte.

Estará esta linguagem dual articulada também com o seu pensamento mestiço que o capacita para simultaneamente observar e criticar diferentes lados, inter-relacionando opostos?

Ramon Puig Cuyàs elaborou uma representação mental sobre artefactos com temáticas ligadas a actos simbólicos ou crenças de outros tempos e sociedades. Centrando-se no domínio dos valores, esta representação tem uma carga afectiva, tornando-se, em simultâneo, expressiva e constituinte de uma razão prática para agir. Por conseguinte, recria amuletos, ex-votos e relicários. Pretendendo com estas inventar artifícios metafóricos para uma presumível defesa na transumância da vida no presente, frequentemente, estabelecendo relações de semelhança semântica, introduz nas jóias instrumentos de orientação no mar, mapas, estrelas.

Mostra, também, certas razões práticas para usar técnicas primitivas.
Ao trabalhar, quer que a acção se produza num tempo célere. No diálogo entre o pensamento, as mãos e a matéria não quer perder as ideias que vão surgindo. Os metais, outras matérias e técnicas que adopta, sendo tão variadas, têm que ser passíveis de estabelecer uma ponte com o pensamento que facilite o surgir das formas com rapidez. Através desta opção demarca, também, uma atitude reactiva. Utilizando meios plásticos com os quais pode fazer rápida e expressivamente uma jóia, afasta-se radicalmente dos pressupostos técnicos e configurativos da joalharia tradicional. Exceptuando as soldaduras dos metais e serrar com finas lâminas de serra de joalheiro, o modo gestual como pratica o acto de pintar ou como ata pedras com fios de metal, são, enquanto processos, elementares. Enquanto actos expressivos, situam-no mais próximo das artes plásticas.

Por vezes, sobre a mesa de trabalho, Ramon Puig Cuyàs dialoga com matérias que vai encontrando. Usa-as, também, como fragmentos que combina entre si e como memórias de pormenores da praia, de uma rua, de um lugar por onde passou. Atraíram o seu olhar; recolhe-as. Quando estes fragmentos estão junto ao mar, a água, ao molhá-las, realça-lhes as formas, cores e texturas. Especula a partir da montagem de múltiplos fragmentos matéricos, conjugando metaforicamente memória e presente e criando figuras duais. Conferindo a cada jóia um carácter de ficção citacionista, através de uma poética “neobarroca”, Ramon Puig Cuyàs exprime, como diz Calabrese, “um ar do tempo que alastra a muitos fenómenos culturais de hoje”.9 Combina nas jóias intenções estéticas com estratégias discursivas para retardar a leitura, com o objectivo explícito de proporcionar uma multiplicidade de interpretações de cada jóia, tão especulativas como a sua. Desafia, assim, o fruidor a entrar consigo no jogo criativo e a explanar as jóias como uma obra aberta. Pretende que descubra no artefacto – que o poderá representar e mediar relações sociais – conteúdos que não sejam apenas materiais e, apropriando-se, o transforme em algo perdurável e investido de valor afectivo, opondo-o aos objectos descartáveis.

Finalmente, certos aspectos, que poderiam ser analisados do ponto de vista fenomenológico, mostram pontos comuns entre Picasso – sobretudo quando permanecia e trabalhava numa das suas casas de férias – e Ramon Puig Cuyàs. Talvez aqui não se trata de coincidências culturais, mas de modos de ser e agir de dois artistas. Coincidem a contiguidade da casa e da oficina, contaminadas por ambientes hedonistas e despreocupação pela falta ordem, a intensidade emocional e intelectual com que ambos se dedicam ao trabalho que advém da percepção e a ausência de hierarquia entre memoria e presente. A materialização das obras é muitas vezes feita, por ambos  em diálogo directo com a matéria. O acaso, a gestualidade, combina-se na poiesis e associa-se á vida quotidiana.

Na oficina de Ramon Puig Cuyàs um dos compartimentos da casa, há sobre a mesa de um enorme conjunto de fragmentos de materiais com uma diversidade de cores e de formas. Uns elaborou-os, outros encontrou-os, alguns guardou-os em caixas, mas muitos estão espalhados sobre a mesa, junto com as colas e os instrumentos para cortar. Parece que só ele sabe onde encontrar o que precisa. Ao lado dessa mesa está a bancada de joalheiro e as  ferramentas  diversas  para  serrar, soldar  e para muitos outros fins. Nas paredes há desenhos, materiais, fragmentos de peças

Da grande janela do seu estúdio vê-se o mar a poucos metros. Ouve-se o movimento dos barcos e de quem trabalha no porto. Em toda a casa há um contacto envolvente com a luz clara do céu Mediterrânico. Olhando da janela do seu estúdio vê estas mesmas cores nos barcos que partem ou chegam para atracar no porto. Em certos casos, até as formas e as cores dos enormes pórticos que guindam os contentores de peixe dos barcos, lembram fragmentos de algumas das suas jóias. Quando cai a noite, deixando ver a lua e as estrelas, no silêncio, os barcos, ao largo, percebem-se apenas através de pequenas luzes que se movimentam no mar. A vida quotidiana conjuga-se no estúdio com fragmentos de sonhos, memórias, afectos. A Cultura Mediterrânica, toda a vida na natureza e as actividades humanas ligadas ao mar são aqui interpretadas nas suas jóias.

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1      CALVINO, Italo, Seis Propostas Para o Próximo Milénio, Lisboa, Teorema, 1994: 65.
2      Clifford, James (1989), Notes on Travel and Theory: http://humwww.ucsc.edu/Cultstudies/PUBS/Inscriptions/vol_5/clifford.html
3      Documentário da RTBF, 1966, Pablo Picasso,  citação do artista s/d: 1ª década do século XX, provavelmente.
4      APPADURAI, Arjun (Ed.), 1986, The Social Life of Things: Commodities in cultural perspective, Cambridge, University Press.
5     CLIFFORD, James,1995, Dilemas de la Cultura: Antropología, Literatura y Arte en la Perspectiva Posmoderna, Barcelona, Gedisa: 150.
6    AUGÉ, Marc, La Guerra de los Sueños, Barcelona, Gedisa, 1998: 17.
7    PUIG, Ramon Puig Cuyàs, 2001, Cal preparar-se? Estratègies per a la Supervivència, Barcelona, Escola Massana.
8    FUSCO, R., 1993: 192, História da Arte Contemporânea, Lisboa, Presença.
9    CALABRESE, Omar, 1999, A Idade Neobarroca, Lisboa, Edições 70.



Ana Campos, 2007

 

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