«A Propósito da Proteção»

Madalena Braz Teixeira

Junho 2020

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É voz comum no nosso país, entre pessoas crentes e não crentes, fazerem-se apelos à Virgem de Fátima, de uma forma brincalhona ou mais leviana, como quem repete uma lengalenga. Esta postura, longe de ser descrente ou ateia, deve a sua constância à centenária devoção à Senhora de Fátima. A permanência desta postura passou mesmo a ser um sinal de identidade dos portugueses e do próprio país, que é definido pelos três FFF: Fátima, Futebol e Fado. Muito embora esta fórmula se tenha iniciado a divulgar no período revolucionário do 25 de abril, relacionando-se com alguma ironia ao período ditatorial de Salazar, é repetida, hoje em dia, como uma simples definição ou sumária tradução do modo de ser português.

Deve todavia afirmar-se que se continuam a fazer promessas com o maior sentido da crença, em ocasiões ou opções cruciais, em bons e maus momentos relativos a acontecimentos transversais quer às vidas dos peregrinos, quer de todas as pessoas. A postura religiosa e a fé propiciam este tipo de comportamentos, mas existem sempre, mesmo entre ateus confessos, circunstâncias, ocasiões ou conjunturas que ultrapassam o entendimento ou a objetividade dos factos e que acabam por fazer tanger no âmago de cada um, ou mesmo num coletivo, uma perceção da impotência e do vazio, face às ocorrências que desviam o pensamento para um outro campo da habitual emoção que atordoa e desenvolve respostas fora dos hábitos quotidianos.

Desta realidade podem referir-se as guerras, tempestades, calamidades naturais terrenas ou marítimas, incêndios ou furacões, mortes súbitas ou clamorosas e as mais inesperadas tragédias. Não se pode deixar de atender aos maiores e mais dramáticos sofrimentos físicos ou psíquicos, pessoais ou familiares, vividos por comunidades desintegradas do seu meio, fora do seu território ou mesmo sem território próprio, em busca ut caput reclinet. Encontra-se hoje em dia, no planeta, um crescente número de pessoas ermas e erráticas, apátridas, desterradas ou desalojadas, sem comer, sem vestir e sem abrigo, caminhando distâncias continentais a pé, sem encontrarem quem as receba e as atenda.

Gera-se o desejo e a necessidade de proteção, que se pode exprimir solicitando auxílio e amparo moral, de ordem afetiva ou profissional, mas também apelando a entidades espirituais de vários graus. As crenças têm neste âmbito uma potencialidade muito especial e o apelo de ordem religiosa dá respostas significantes. Deus tarda mas não larga é uma expressão popular brasileira, semelhante e paralela à portuguesa Deus não dorme, que resume de algum modo a convicção secular do crente, numa postura de reverência perante os poderes sobrenaturais com a capacidade de transformarem qualquer realidade, por mais complexa que seja, numa promissora esperança.

A relação com o sagrado processa-se quer em intimidade, quer através de rituais e liturgias. A oração reveste-se de uma poderosa via de acesso à Divindade, existindo objetos, como os rosários e os terços, destinados às preces cuja especificidade e forma orientam o tempo e o modo como decorre a oração. Existem outros e numerosos meios de transmissão com o divino que foram merecendo, ao longo dos séculos, as mais diversas configurações e modos destinados a representar a imagem dos seres sagrados, das entidades inerentes e próprias das diversas religiões, à exceção do Islão, que rejeita a figuração. Esses ícones foram traduzindo, no Cristianismo, diversas formas de contacto com o Altíssimo na sua trilogia, com a Mãe de Cristo e com toda a plêiade de mulheres e homens consagrados como Santos, expressos com os seus específicos atributos, os quais os distinguem uns dos outros. Sto. António terá sempre o menino ao colo como S. Pedro levará sempre a chave do céu na sua mão direita.

A iconicidade dos Santos foi merecendo ao longo dos tempos a atribuição de códigos próprios que contribuem para a sua própria representação, capaz de ser entendida e identificada pela universalidade dos continentes. Mereceram sempre uma atenção especial quer pelos seus autores, quer pelos encomendadores das peças designadas como objetos de culto. São classificadas como arte sacra, em que se incluem tanto as highlights da pintura e da escultura universais, do mesmo modo que os objects d’art e as peças de artesanato. De várias escalas e feitios, executados para colocar em altares ou presos por fios ou alfinetes junto ao corpo, esta imaginária de medalhas e medalhinhas foi sendo realizada desde a mais remota antiguidade, representando os seres cósmicos e toda a evolução de crenças que o homem foi homenageando ao longo da história, devido à sua permanência nas mais diversas comunidades e geografias, exaltadas pela manutenção viva da crença na sua proteção sobre as populações. A humanidade foi criando e usando os mais diversificados objetos em que foi crendo e que lhe foram servindo de proteção.

As mais antigas gravuras de Foz Coa datam de 20 000 anos a.C. Constituem os maiores e mais relevantes grafismos de ar livre em território português. São apelativos de uma crença que ficou registada até hoje e que correspondeu a um chamamento esotérico dos seus autores, que clamaram para serem ouvidos. Existem também pequenos objetos e decorações em grutas e cavernas que indicam a mesma intencionalidade. Representam clamores de momentos vividos por essas comunidades, que desejaram manter em permanência com o propósito de ficarem lembrados e de constituírem um exemplo de ações fundamentais que era necessário virem a ser repetidas. Atualmente, o culto de Nossa Senhora de Fátima ou do Senhor Santo Cristo dos Milagres dos Açores constituem os exemplos de imagens mais reconhecidos no nosso país, a quem multidões de crentes e de menos crentes se aproximam para pedir proteção.

Existem ainda outras áreas de devoção e de crença que têm a ver com a magia, a feitiçaria, os feitiços e os bruxedos, assim como as chamadas crendices populares. Estas, de raízes seculares, eram/são baseadas em rezas, apelos, súplicas e chamamentos, acompanhados por chás ou diversos tipos de bebidas, tomadas em certos dias, em determinadas horas do dia e para os mais diversificados efeitos. Expressam-se quer por dádivas, quer através de objetos eleitos ou manufaturados para o efeito que propiciam os contactos com o além.

A magia constitui uma outra forma de ocultismo que se tem mantido no nosso país com os seus cultores preferenciais, assim como o mundo espírita que tem uma vocação dedicada ao contacto com seres já falecidos, usando objetos que lhes tivessem pertencido. Toda esta diferenciada atividade pararreligiosa usou e usa objetos e orações para os respetivos cerimoniais, nos quais se integra a urgência de pedir a proteção espiritual de entes considerados superiores, mais indicados para responderem ou darem respostas sobre o modo de suprir as mais complexas necessidades e a realiz ação dos solicitados e ansiados desejos ou pedidos.

 

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Os amuletos são peças que gratificam os homens e geram as potencionalidades desejadas de proteção e de força anímica que vêm acompanhando a vida humana desde a pré-história. Esta tipologia de peças foi recebendo, ao longo dos séculos, várias formas e volumes, diversas expressões gráficas e icónicas, trabalhadas nos mais estranhos materiais, mantendo-se intocável o sentido mágico das mesmas. Eram e continuam a ser objetos pessoais e, de algum modo, intransmissíveis, podendo todavia ser doados em vida ou mesmo deixados em herança, inscritos em testamentos, como era o caso de certas pedras preciosas que eram consideradas pela sua cor e brilho com propriedades mágicas capazes de afugentar os maus presságios e augúrios.

Há ainda a referir os talismãs, que se definem como objetos de bem-fazer e que foram acompanhando o homem na sua travessia ao longo da história. Conferiam proteção, poder, força e energia, pertencendo ainda ao mundo da magia. Há símbolos de fé como a cruz, e outras formas como o coração, que é um sinal de amor, ou a pomba, que é o símbolo da paz, ou ainda o trevo como sinal de sorte e muitos outras figuras que vão passando de geração em geração. O signo saimão é considerado ainda hoje um símbolo muito forte. Corresponde a uma figura geométrica, composta por dois triângulos entrelaçados, que representa a sinalética que estava gravada no anel de Salomão, o rei da sabedoria, do amor e da suprema felicidade.

As relíquias pertencem ainda a esta tipologia protetora usada junto ao corpo, numa casa ou capela, numa igreja ou convento, num mosteiro ou palácio, num quarto ou numa sala. Constituíam normalmente peças que davam segurança física ou psíquica a uma pessoa, a uma família ou a uma comunidade. Foi deste modo que alguns dos nossos artistas joalheiros enveredaram por criar novos vínculos de bons presságios, de bom tempo e de boa sorte que possam servir de sinais ou símbolos originais e ícones pessoais em que cada um se possa identificar.

 

 

MADALENA BRAZ TEIXEIRA | Membro PIN Honorário

Licenciou-se em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa. É Mestre em História de Arte pela Universidade Nova de Lisboa, Doutorou-se em Museologia na ULHT, em Lisboa (2018). Foi diretora do Museu Nacional do Traje – Parque do Monteiro-Mor (1983 - 2008). Tem várias obras publicadas no domínio da História de Arte, da Museologia e da Gestão do Património. E do mesmo modo, na área da Estética e da História do Traje e da Joalharia. Destaque para  O Triunfo da Joalharia, Lisboa, Caleidoscópio, 2007; Um Percurso Exploratório no Museu Nacional do Traje 1983-2008 (no prelo). A sua autobiografia foi editada pela Faces de Eva, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, n.º 7, 2002.

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