«José Aurélio - Oitavas da Oficina»
Hugo Miguel Crespo
Agosto 2021
A exposição Oitavas da Oficina. José Aurélio: Joalharia não segue uma organização cronológica, negando uma qualquer ideia evolutiva, mesmo que estética ou estilística. Apresentando a obra em grandes núcleos temáticos, tem início numa auto-biografia de José Aurélio (n. 1938), uma auto-reflexão enquanto alquimista, em que à concepção da peça de joalharia preside o sentido de transformação, própria (interior) e matérica (virada para o mundo exterior). Essa actividade mágica, expressa na sua capacidade qualificada de conceber e produzir objectos de adorno, perpassa por toda a sua obra de joalharia e é o principal fio condutor da exposição, muito bem gizada por Laura Castro e apresentada de forma tão bela como eficaz por Filipe Alarcão e Ana Teresa Ascensão. São, no geral, objectos produzidos num contexto familiar e de proximidade emocional, amoroso, peças feitas para presentear, “dedicatórias” sob a forma de jóia. Assim, pretendem-se mágicas, de protecção, assumindo-se muitas delas como verdadeiros talismãs, de função amulética, como torques, pendentes espiralados, etc.
Trata-se de uma exposição sobre o fascinante e fascinado método criativo de José Aurélio quanto ao mundo miniatural da jóia, face menos visível de um processo de indagação artística que lhe conhecemos da escultura de grande escala, monumental, de arte pública. Uma diferença apenas de escala que supõe, no entanto, os mesmos métodos de concepção escultórica, sendo-lhe análogos os de execução. É natural, assim, que na sua obra de joalharia encontremos tanto materiais como técnicas trazidas da escultura, tanto o processo aditivo, mais ligado à modelação, para a criação de modelos ou positivos que depois irão resultar em versões metálicas, como o processo subtractivo, do entalhe, do retirar material até chegar à forma idealizada. Temos assim modelos em gesso ou plasticina, e a sua versão definitiva em metal nobre, a prata. E como é precioso podermos contar com tais estudos tridimensionais para melhor nos adentrarmos no processo de criação de José Aurélio, já que esboços escultóricos são de regra descartados, e que encontramos ao longo da exposição. O escultor, aliás, assume-se como um dos poucos cultores entre nós deste tipo de técnica, com recurso à produção de modelos e à posterior fundição em areia, de grande simplicidade de recursos. Daí que algumas das primeiras experiências sejam feitas em estanho ou chumbo (pela baixa temperatura de fusão), e depois em bronze e prata, e também ouro.
Já os objectos produzidos por subtracção, por entalhe, expressam outro dos temas da sua obra, que é o do tempo. Não apenas o largo tempo da sua produção - como peças entalhadas em osso ou seixos, conchas, etc. -, como também indagação do sentido do tempo e do seu transcurso, que vemos no motivo recorrente do pêndulo ou prumo, e de outros mecanismos afins. Esse tempo é primeiro um momento de recolha, e daí que a oficina que é laboratório encerre um verdadeiro repositório de materiais recolhidos em périplos e deambulações, desde espécimes do mundo natural (naturalia), como crânios animais e conchas, até complexos engenhos feitos por mão humana (artificialia), à maneira dos gabinetes de curiosidades de antanho. Laboratório de maravilhamento poético, mas essencialmente de estudo científico e estético. Estes materiais levam o escultor a formas muito recuadas de perceber, de se encantar, e tirar partido dos materiais que a natureza oferece. Por vezes estes reclamam pouca intervenção, noutros casos levam a uma profunda transformação, dir-se-ia alquímica. Assim, não surpreende que os materiais que têm atraído José Aurélio sejam os mesmos que fascinaram por milénios o homem primitivo, como o barro, a casca de ovo de avestruz, os seixos e conchas das praias, dentes, e marfim de elefante, passando depois pelo domínio do minério e da metalurgia. É um universo material a par do imaginário figurativo, de rostos (máscaras), figuras entrelaçadas, animais, e plantas (flores, folhas, e sementes), algumas a lembrar ídolos pré-históricos, tal a abstracção e simbolismo que procuram expressar.
Também o tempo necessário ao seu fabrico, um tempo que não é o de hoje, se aproxima das criações pré-históricas. Os caminhos de indagação são os mesmos desde há milénios, e não estranha que se chegue a soluções semelhantes quando confrontado com os mesmos desafios. Não apenas os materiais nos transportam para uma “idade da inocência”, como também as formas, em particular a mais perfeita, a conta esférica, a par de discos, rodas, círculos e espirais, nos reenviam para o tema do tempo, e para as preocupações cosmogónicas do homem primevo. A conta, nas suas multímodas variações, domina grande parte da história da joalharia e da própria história da humanidade, das relações comerciais, sociais, hierárquicas, etc. Assim, não pode surpreender que no percurso experimental, de indagação de José Aurélio encontremos o arranjo e rearranjo de unidades de contas, como variações de um mesmo motivo. Esta contínua e repetida variação sobre os mesmos motivos envia a sua obra para o domínio da composição musical, já que elaboração abstracta, matemática e desmaterializada que tanto define o processo criativo e rigoroso do escultor. Envia-a também para a esfera do jogo, não apenas pelo aspecto lúdico e sensorial dos seus objectos, mas também porque pela sua aparente simplicidade, nos fazem crer que são fáceis de criar, como jogos de criança, um aspecto sublinhado pela preferência por materiais como o plástico multicolorido. Objectos de grande refinamento intelectual e erudição, as jóias pacientemente concebidas e executadas por José Aurélio, imbuídas de poder mágico e amor sensível, conquistam através desta importante exposição o lugar que merecem na história da joalharia contemporânea.
Hugo Miguel Crespo
Centro de História, Universidade de Lisboa