1 - Ilustração da História das Índias de Nova Espanha, escrito entre 1576 e 1581 por Diego Durán, frade dominicano e historiador espanhol.

Ana Campos,
Acta da comunicação "Ouro: mitos e roturas"
no Encontro / Debate Luso Francês “Jóias: Espelho da Sociedade”
Instituto Franco-Português, Lisboa, 25 Fev 2010



Sinopse
Ao longo da história da humanidade o ouro tem sido encarado como valor material intangível. Plínio, O Velho, na sua História Natural, a propósito do estudo do ouro enquanto minério, já referia também a construção de mitos e a ostentação em Roma. O ouro foi estando ligado a edificação de impérios, a pirataria, a guerras, a rotura de direitos humanos em minas, a problemas de impacto ambiental.
A Nova Joalharia quis quebrar este mito, levantando questões sociais, criticando e introduzindo o ouro como medium para veicular ideias, articulado com questões estéticas até aí situadas no campo das Artes Plásticas.
Entretanto, o capitalismo, sempre plástico e adaptando-se às circunstâncias, faz a apologia do crédito e trás uma crescente comoditização, sublinhando também, na entrada do século XXI, que outros produtos mainstream rivalizam com o ouro. Recentemente, outros valores financeiros se levantam. Eis que a crise introduz, no presente, novos factos: o ouro volta como alvo de investimento, porque é visível e palpável, contrariamente ao mercado de acções.
Em simultâneo, os joalheiros contemporâneos, inscritos no campo da arte, reclamam que não fazem produtos utilitários, nem commodities com vida breve ou variável, de acordo com princípios ou visões capitalistas. Continuando a posicionar-se para além do mito do ouro, valorizam a reflexão e o processo, por vezes em detrimento do resultado final, introduzindo novas questões epistemológicas nesta área de fronteira que se quer incluída no terreno plural da arte.

 


Gaius Plinius Secundus, História Natural, Volume I, edição de 1669.



Reflectir sobre a cultura material corresponde a procurar compreender valores sociais, nomeadamente de culto, assim como outros aspectos sócio-políticos e económicos inscritos num dado contexto Histórico com que, certas vezes, se interligam histórias pessoais. Os objectos, como também os materiais, têm uma vida social.  Alguns são eco de memórias que interagem no presente durante a concepção. Todos são, por uma razão ou por outra, expressão do imaginário, de demandas sociais ou de encomendas, de orientações políticas ou de projectos para a inovação. Representam, sempre, sistemas específicos de troca, de mercado, de consumo e de produção de valores, não apenas  económicos, mas também simbólicos. Para os usuários, os artefactos e certas mat´érias – como o ouro, por exemplo – constituem-se como meios miméticos  ou, noutros casos, distintivos e, sempre, como meios para exprimir identidades colectivas e individuais. Quem os projecta, desempenha papéis não apenas criativo, inovador, inventivo, prefigurativo, mas também – tal como os próprios artefactos – de mediador social simbólico. As coisas são fruto de um modo de pensar, da estética e do gosto que lhes são contemporâneos, mas também de um um modo de produzir ou fabricar, de determinado saber fazer artesanal, técnico ou tecnológico. Aparentando enunciar apenas uma utilidade eminentemente prática – ou mais de uma combinadas entre si – cumprem também alguma função social que, conjugada com os items anteriores, lhes confere sentido.

As coisas aqui em foco são as jóias e outros artefactos fabricados em ouro, a matéria que os constitui.
O ouro permanece como um arquétipo, talvez um dos poucos que, até à contemporaneidade, aparenta ser transcultural, embora o seu sentido, como antes se diz, só possa ser compreendido de acordo com cada contexto estudado.
Mircea Eliade sublinha que nas civilizações arcaicas, “os objectos não têm um valor intrínseco. Um objecto ou uma acção adquirem um valor e, desta forma, chegam a ser reais, porque participam, de uma maneira ou de outra, numa realidade que os transcende. Uma pedra, entre tantas outras, chega a ser sagrada”, porque se tornou símbolo de algo, porque se tornou um mito ou porque participa num rito. Considera que este objecto se torna um “ser que aparece, então, como um receptáculo de uma força estranha que o diferencia do seu meio e lhe confere sentido e valor.” Nesta perspectiva, independentemente da forma ou da substância, nas civilizações arcaicas o processo de significação é transcendente. A dita pedra vulgar “será convertida em ‘preciosa’, porque foi impregnada de uma força mágica ou religiosa em virtude da sua forma ou da sua origem”, tornando-se num ser intemporal eternamente celebrado e duplicado, como regresso às origens.  
Eliade não pretende, apenas, transportar o leitor para uma reflexão sobre a atribuição de valor nas sociedades arcaicas. Ao longo de O Mito do Eterno Retorno, procede a  uma critica mordaz sobre as teorias filosóficas pós-hegelianas que, reflectindo-se no estudo da História, introduzem o “homem histórico” e consideram que homem “é na medida em que se faz a si mesmo no seio da história.” Considera que as sociedades arcaicas, rejeitam o “tempo concreto” e, portanto, negam a história, exprimindo esta rejeição através de retorno às origens. Entende que é necessário compreender que estas sociedades celebram arquétipos, para se defenderem de forças sobrenaturais e não, apenas, porque são tendencialmente conservadoras. Defesa, é, aqui, a sua palavra-chave. Lembra que, com Marx, a história despoja-se “de toda a significação transcendente”, passando a centra-se na luta de classes. Pergunta-se, então, o que aconteceria no mundo ocidental, com tantos dramas e opressões. “Em que medida semelhante teoria poderia justificar os sofrimentos históricos?”  Em suma, Eliade defende uma valorização metafísica da existência humana, considerando que a antropologia filosófica deve incluir esta questão nas suas reflexões, a par de concepções da cultura ocidental. Eliade admite a existência de arquétipos profanos, mas sublinha que têm, sempre, origem em crenças arcaicas. O ouro está entre estes, sendo, em variados casos, matéria para representação de figuras de culto.



 Homem Vitruvio. Ilustração de Leonardo de Vince para o livro La divine proportion, de Luca Pocioli.


Contudo, os arquétipos participam em dinâmicas sociais, reconstruindo-se a sua significação. Se, como Marc Augé, considerarmos o contacto humano através de viagens ou diásporas em que o móbil eram transacções de mercado, introduziremos uma outra questão que pode conduzir a compreender agenciamentos sociais em diferentes contextos humanos. Augé refere-se a África, onde fez trabalho de terreno durante vários anos. Podemos lembrar outros exemplos que conduziriam a estudos comparados. A rede de diásporas Indicas que entre os séculos IX e XVI envolveu Árabes, Hindus, sociedades arcaicas Africanas ab origene  e mais tarde Europeus, tinha como o cerne o comércio, mas não diluiu aspectos religiosos inerentes a cada cultura. Na Antiguidade,  o Mediterrâneo foi, também, um palco de trocas comerciais, de contactos religiosos, como também de confrontos. O mesmo se poderia referir relativamente ao que Sérge Gruzinski chama primeira globalização, promovida por Portuguesas e Espanhóis através de investidas entre a América de Sul e outros pontos do mundo.  Através destas redes sociais, o  ouro, o marfim, as especiarias, os têxteis, outros objectos móveis e mesmo os escravos são figurantes de práticas sociais diferentes das que refere Eliade. Mostram, como também refere Augé , que o homem se faz a si mesmo, construindo a sua sociedade, conservando o mesmo sistema religioso e político-social, mantendo crenças e próprias ou criando hibridismos. De resto, todo o contacto humano contribui para criar ou renovar dinâmicas sociais, ainda que neste aspecto se possam incluir situações como o colonialismo, de que o Ocidente tem por fazer o branqueamento, como já terá feito com as cruzadas cristãs na Europa, de que se terá desculpabilizado. Os produtos referidos competiram em transacções comerciais. Não apenas aos olhos dos Ocidentais, mas do mundo democrático contemporâneo, poderá dizer-se que o ouro figurou e figura em negócios desiguais e mesmo anti-éticos.
Por exemplo, a partir do século XVI, o ouro, o marfim e os escravos eram trocados por contas de vidro de Veneza, entre agentes locais e Europeus que acostavam na África Ocidental. “Entre os Assante algumas das antigas contas, feitas de vidro em pó, valiam o seu peso em ouro e cada uma era equivalente ao valor de sete escravos. Chamavam-nas bodom – o que significava ‘ladrar’ em Akan, a língua Assante. Acreditavam que tinham poderes sobrenaturais e que protegiam os donos em tempos de perigo, por ladrarem como um cão. Os bebés reais eram banhados em bodom para os fazer crescer e era por isto que estas contas eram guardadas em lugar seguro”.  Assim, o ouro foi mediador de uma nova crença. Foi gerador de um processo de significação de um outro símbolo metafísico, inscrito nas contas bodom, que simultaneamente foram revalorizadas económica e transcendentalmente. Por serem caras, as bodom eram apenas possuídas por quem tinha poder para tal, o que acentua um papel social múltiplo, como valor de troca e como coisa física capaz de designar estatuto financeiro elevado.



Recolha ilegal de ouro na região do povo Yanomami, Amazonas.



 Vamos vendo assim que, diferentemente de outros produtos transaccionados, o ouro, em si mesmo ou transformado em artefactos, nem sempre se apresenta-se como um símbolo que una homem e crenças. É bem mais frequente ser um signo que designa abundância material, poder, estatuto, supremacia. Assim tem sido, até hoje, quer em contextos locais onde o minério existiu e pôde ser explorado, quer para onde foi transaccionado.
Gaius Plinius Secundus (Plínio, O Velho), na sua História Natural, a propósito do estudo de minérios, reconhece as características físicas do ouro, superiores aos de outros metais, como a ductilidade e a maleabilidade, assim como propriedades que permitem ser batido até formar uma fina folha ou trefilado, muito fino, de modo a ser tecido ou cosido à roupa. Mas, aproveita para referir, também, a construção de mitos, como Midas, e a ostentação em Roma. Critica o uso de moedas de ouro pela República e dá exemplos de governantes, como Claudius, que proclamam as suas proezas de campanha, exibindo pilhagens de ouro. Comenta: “vi Agrippina, mulher do Imperador Claudius, numa cerimónia em que este apresentava uma batalha naval; sentada ao seu lado, vestia um casaco militar inteiramente feito de tecido de ouro”.
O ouro foi estando associado a edificação de impérios, a pirataria, a guerras. Muitas vezes interligou estas situações, já que os corsários trabalhavam a mando de governantes ou com estes estabeleciam pactos de poder. A prática de apreensão da carga de outros navios já era difundida na Antiguidade, nomeadamente no mar Mediterrâneo onde, comerciantes como os Fenícios, pilhavam e negociavam. A pirataria tornou-se, também, associável a conquistas dos Vikings. Na Idade Média, como pretendem certos autores, poderá ter havido tráfego de mão de obra escrava e ouro, entre piratas do norte da Europa e ‘Berberes’ , que levaram à grandeza e poder de cidades dominadas pelos irmãos Barbarossa, onde a ostentação do empório, era demonstrada por construções luxuosas e, uma vez mais, pelo ouro. Baba Aruj, o primeiro irmão a deter o poder, associou-se ao Império Otomano para fazer frente aos Reis Católicos e, assim, ser nomeado Governador de Argel e do Mediterrâneo Ocidental, que se tornaram centro de um vasto empório baseado na pirataria.  
Gruzinski refere, nas suas obras, a construção de identidades mestiças, como também locais e divinas, os homens-deuses.  No Brasil, no México e nos Andes, terras de violência, onde as sociedades locais se viram envolvidas em longas guerras santas com conquistadores que, para construir um mundo novo, não mostraram misericórdia para com os Índios. Descreve como, entre os séculos XVI e XVIII, nas terras altas do México colonial, alguns Índios se levantam contra o domínio Espanhol, mencionando o impacto social dos homens-deuses e o controle que exerciam sobre os seus seguidores, para sondar a substância do respectivo discurso. Este caso exprime um raros exemplos conhecidos de crítica sistemática da sociedade colonial e a acção de homens de raiz social e culturalmente, então, marginalizada, o que os levava a confrontos. Trabalhavam para entender e dominar as mudanças que afectavam e esmagavam empreendimentos próprios, revelando um dinamismo e uma criatividade muitas vezes ignorados. Como os Incas , os homens-deuses estiveram envolvidos em guerrilhas na defesa do ouro que escondiam em depósitos nas florestas de limites indefinidos e, como tal de difícil acesso.
Não valerá a pena, referir outros exemplos de pilhagem, de conflitos e tensões políticas e sociais de toda a espécie, em diferentes contextos geográficos, para ilustrar que pensar o ouro passa, sempre, por políticas e estratégias para conquistar este valor material e, por fim, designar riqueza e ostentá-la. Assistimos, hoje, a problemas idênticos com petróleo (o ouro negro) que, como este vil metal, está igualmente ligado à corrupção de direitos humanos e a problemas de impacto ambiental. Ambos oscilam com as cotações do mercado, segundo o valor mercantil que lhes vai sendo atribuído.
 

Henry VIII de Inglaterra, Hans Holbein the Younger – 1536-37 Colecção do Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid


Diferentemente do petróleo, o ouro é frequentemente levado à categoria de adjectivo que reconhece o que seja supremo. A palavra ouro qualifica, em designações como idade de ouro ou os mais variados momentos de ouro e prémios de ouro que os celebram. O rectângulo de ouro, ou regra de ouro, atravessa a história da sociedade ocidental como norma suprema. Luca Pacioli, promoveu-o a Divina Proporzione e, na obra com o mesmo título, ilustrada por Leonardo Da Vinci, defendeu a aplicação desta regra para a representação de proporções harmoniosas na arquitectura e na arte. Esta regra foi e é, hoje, estudada em campos tão diversos como a matemática, a geometria, a estética, a arquitectura, a pintura, a escultura, a música e teve uma grande influência sobre gerações de artistas e arquitectos.
Através deste exemplo, pretende-se sublinhar que a atribuição de valor, pelo homem e pelas instituições, é complexa e, sempre, contextualizada social e culturalmente. Ainda que certas questões não tenham chegado ao nível da consciência, interagimos, ainda que impensadamente, em processos de significação que se inscrevem no contexto que habitamos e de acordo com um imaginário colectivo.
O homem renascentista via-se como centro e escala das ciência e das artes. Mas, através de uma filosofia operativa com premissas que transcendiam as bases teológicas,  considerava que havia uma entidade suprema, que era deus, embora com este pudessem ser comparados certos homens e coisas, pelas elevadas qualidades demonstradas. Por esta razão, Pacioli, promove a regra de ouro a valor divino. Vasari também promove Miguel Ângelo ao mesmo patamar, dizendo: “ele, com todos os merecimentos, deve ser chamado escultor único, pintor supremo e não só arquitecto excelente, senão verdadeiro mestre da arquitectura. E com certeza podemos afirmar que não se equivocam aqueles que o qualificam de divino, porque divinamente se reuniram nele as três artes mais honrosas e mais engenhosas que podem existir entre os mortais e, com elas, como se fosse um deus, enriquece-nos infinitamente”. 
No presente, a religião e os deuses são substituídos pelo consumo. O valor do uso, como salientou Marx, da mera utilidade prática das coisas, também perdeu importância. No mundo capitalista, tudo se transforma em produto, em mercadoria, em commodity com uma dada vida social. Segundo Appadurai, as “commodities são coisas com um determinado tipo de potencial social, com particularidades especificas, sendo distinguíveis de ‘produtos’, ‘objectos’, ‘bens’, ‘artefactos’ e outros tipos de coisas”. São representações do sistema de produção capitalista, quer sejam de primeira necessidade, como o a água ou o petróleo, os mais variados serviços e meios informativos, ou distintivos, como o ouro. Até o desejo se sublinha, hoje, como valor, como produto industrializável, podendo, como todas as coisas em que se reflecte “sair e entrar do estado commodity e estes movimentos serem lentos ou rápidos, reversíveis ou terminais, normativos ou desviantes.”
Assim, vai já longe o tempo em que o ouro foi matéria para amealhar, como acontecia em meios rurais, no Portugal da primeira metade do século XX. O capitalismo, sempre plástico e adaptando-se às circunstâncias, mais recentemente, fez a apologia do crédito e trouxe uma crescente comoditização, sublinhando que outros produtos rivalizavam com o ouro na representação pública de estatuto (carros, casas, férias de luxo dispositivos digitais, etc...). Recentemente, outros valores financeiros se levantam. Eis que a crise de 2009 introduz novos factos: o ouro volta como alvo de investimento, valor para consumo seguro porque, embora tenha flutuações de preço como mercado de acções, é visível, palpável.
Não raras vezes, o capitalismo associa-se à burocracia. A Convenção de Viena, um acordo das Nações Unidas assinado em 1972 e promulgado por vários países, entre os quais a maioria dos estados Europeus, veio a constituir-se como organismo central para a certificação do ouro e de ligas, assim como a respectiva circulação transnacional.  O seu papel inscreve-se na ética capitalista de defesa do consumidor. Assim se acentua o valor material do ouro, como commodity: só os artefactos que detenham uma marca de responsabilidade consignada por este Tratado, ou de subsequentes marcas regulamentadas nos respectivos países signatários, são um valor seguro.  Como tal, sob este ponto de vista, não é minimamente relevante o que seja feito com esta matéria, do ponto de vista da arte ou do design, já que o que assinala a identidade e o prestígio do produto é a dita marca.
Estas normas transnacionais, desenhadas em nome da defesa de consumidores cujo imaginário se centra em valores capitalistas, não foram, como é óbvio, instituídas pelos actores implicados. Se comerciantes e fabricantes aprenderam a lidar como elas, aos artistas joalheiros causam problemas complexos, porque encaram o ouro como media, não apenas pela sua ductilidade e maleabilidade, mas, principalmente, como linguagem e meio artístico. Porque vivemos numa sociedade polifónica, deparamo-nos, aqui, com um mundo imbricado onde agentes que partilham o mesmo meio – o ouro – o valorizam de diferentes modos. Uns usam-no para fabricar commodities, outros para criar obras de arte, pretendidamente, não-produtos ou, preferivelmente, não-commodities. 
Recuemos um pouco, para pensar como chegámos até aqui, no campo da arte. A joalharia artística, nos anos 1960, quis romper com o mito do ouro. Este joalheiros, inscreviam-se na geração baby boom que, então, acedia em massa às universidades. Vivia-se num âmbito democrático, enérgico, em que tudo se questionava. As atitudes limite que adoptam são de reflexão interna e de oposição a princípios capitalistas e burgueses. São semelhantes aos dos movimentos de emancipação das mulheres e dos gays que, por extremos que pareçam, não procuravam rompimento, mas sim aceitabilidade social. Lembram, também, formas da contra-cultura, como o festival Woodstock onde, em 1969, se reclamava paz e fim da guerra do Vietname, num cenário de enorme liberdade do corpo, oposta as todas as práticas instituídas.
Demarcava-se uma vanguarda experimentalista – a Nova Joalharia – que introduziu propostas irreverentes no campo artístico, contestando tudo o que pudesse associar-se a ideais burgueses, a estética do belo, convenções culturais ou governamentais estabelecidas e circuitos comerciais tradicionais, de modo semelhante ao que aconteceu com a Arte Povera. Também deixaram de usar ouro, porque, por um lado, representava exploração humana nas minas e rios onde é extraído, por outro, estava associado a princípios capitalistas centrados no mundo mercantil. Por volta dos anos 1990, o ouro estava de volta. Mas, os artistas joalheiros introduziram o ouro como medium, como instrumento artístico para levantar questões sociais e criticar, articulado com questões estéticas até aí situadas no campo das artes plásticas. E, todos os materiais eram bem vindos e associáveis ao ouro. Uma das jóias mais paradigmáticas desta década é Gold makes you blind, de Otto Künzli que, para invocar problemas graves que se passavam em minas na África do Sul, cria esta pulseira em borracha opaca que cega o ouro contido, tornando-o invisível. A pulseira e o título sublinham a invisibilidade, para criticar o imaginário capitalista inerente ao ouro. Até hoje, os artistas joalheiros continuam a posicionar-se para além do mito do ouro, valorizando o processo em detrimento do resultado final e introduzindo novas questões epistemológicas sobre as quais há que reflectir, a propósito desta área híbrida.

Para quem esteja distante do panorama da joalharia artística, o ouro, a platina, as pedras, os ditos materiais preciosos, continuam a ser aqueles com que se executam jóias. Este preceito não é apenas inerente a uma visão burguesa e económica da joalharia. É uma perspectiva amplamente partilhada, inclusivamente, por muitos artistas e designers. Por exemplo, Georges Braque, Max Ernest, Man Ray, Meret Oppenheim realizaram jóias em ouro. A Galeria Tereza Seabra, em Lisboa, quando inaugurou, em 1993, organizou a exposição Ilegítimos: Jóias Contemporâneas Portuguesas, para a qual convidou reconhecidos artistas plásticos Portugueses que, pela primeira vez, criaram jóias. Se Cabrita Reis ou Rui Chafes deram aqui continuidade à sua obra e recorreram a borracha ou ferro, muitos usaram materiais preciosos – ouro, prata, pedras – que se incluem num imaginário conservador. Vemos, assim, com perplexidade, artistas como Ana Jotta, Pedro Croft e Miguel Branco – que nos habituamos a ver fora da alçada do capitalismo, que se reclamam distantes do mundo das commodities, que consideramos que questionam a arte como terreno pluralista – tomar o ouro, para fazer jóias, como um fim, não pensando que este medium serve o aparelho capitalista. Porquê esta atitude tão contrastante e inscrita num imaginário conservador?

Otto Künzli. Gold makes you blind. Alemanha, 1980. Borracha e ouro.



​Isto mostra que a propósito do primado do relato de Vasari, sobre o qual reflecte Danto, ainda há mais a questionar, para além do mimetismo.  Artista e biógrafo do Renascimento Italiano, Vasari escreveu em 1550 sobre arquitectos, pintores e escultores, esforçando-se por estabelecer uma hierarquia entre estas artes, dizendo: “comecemos, pois pela arquitectura, como a mais universal, necessária e útil para os homens, ao serviço da qual estão as outras duas (...). A escultura e a pintura são irmãs, nascidas de um mesmo pai, que é o desenho, num mesmo parto e ao mesmo tempo, e nenhuma destas se avantaja sobre a outra, senão apenas quando a virtude e a força que têm em si mesmas façam com que um artista esteja diante doutro, mas não por diferença ou grau de nobreza maior ou menos entre elas.” A cada uma Vasari associa outras artes “auxiliares”.  Legitimou, portanto, uma divisão no cenário das artes, fazendo emergir as figuras do arquitecto, do escultor e do pintor – do artista singular – que concebe o trabalho intelectual ou mimético, conforme a arte que pratica, e a dos artesãos que, submetidos, no estaleiro ou na oficina executam a obra manual. Este modo de interpretar, alastrando, criou diferentes cenários artísticos que separadamente foram construindo uma hierarquia simbólica e identidades próprias.
Contudo, como lembra Castro Caldas, “como todas as outras disciplinas artísticas que questionaram os seus limites estritos e as suas fronteiras rígidas, a Joalharia também passou a falar a partir do lugar onde não quer estar ou não pode estar e, fazendo isto, passou a assinalar esse lugar deslocado ou, melhor ainda, a deslocá-lo incessantemente consigo.”  Entretanto, os Artistas não querem inclusão, nem hibridismos, mostrando que a hierarquia de Vasari ainda está viva e activa, agem, talvez impensadamente, como se existisse Arte (com “A” maiúsculo) e outras artes que se dedicam apenas à manufactura, inscritas num lugar subsidiário. Mas, se ”o pluralismo do presente mundo da arte define o artista ideal como pluralista”,  perante esta questão politicamente correcta vários são os que ficam postos em causa, num mundo imbricado onde artistas plásticos e artistas joalheiros partilham processos, mas se situam em dois mundos. Ainda há muito trabalho a desenvolver para romper esta convicção cultural assimilada – a hierarquia de Vasari – como também para mostrar, em diferentes terrenos, o modo híbrido como a joalharia se vê a si mesma, como arte feita, não tanto para o corpo, mas sobretudo a propósito do corpo.


____________________________________________________________

[1]              APPADURAI, Arjun (Ed.) , The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective, Cambridge, University Press, 1986.

[2]               Platão interpretou a palavra mímesis segundo duas perspectivas. Por um lado, deprecia-a, encarando-a apenas como imitação de um modelo. Por outro – e será esta que aqui se salienta – entende-a, como diz Fabietti, “do  domínio do rito divino. O poeta, dizia Platão, quando é inspirado pelas musas, fica «fora de si», canta e dança sob a inspiração da divindade. De certa maneira os poetas «imitam» alguma coisa que se encontra «fora deles mesmos»”. Um acto como este é comparável a “uma forma de auto-representação do Eu colectivo que permite considerar-se como diferente do outro, como distinto de si.”

[3]              Eliade, M., El Mito del Eterno Retorno: Arquetipos y repetición. Madrid: Alianza, 2002.

[4]              Eliade, M., 2002: 143.

[5]              “Consagrados à origem”, como diz Eliade, M. 2002.

[6]               Gruzinski, S. La guere des images, de Christoph Colombe à “Blade Runner” (1492-2019). Paris: Fayard, (1990).

[7]              Marc, Augé, Dios como objecto, Barcelona, Gedisa, 1998.

[8]              Fisher, A., Africa Adorned, London: Collins Harvill, 1987: 70

[9]              “I have seen Agrippina, the wife of the emperor Claudius, at a show where he was presenting a naval battle, seated by him, wearing a military cloak made entirely of gold cloth.”:

Natural History 33.63; tr.  J.F. Healy: [http://www.livius.org/pi-pm/pliny/pliny_e.html], consultado em 17/01/201

[10]              Talvez fosse pela fama dos poderosos corsários irmãos Barbarossa que surgiu o trocadilho entre a designação ‘pirata berbere’ e a palavra bárbaro.

[11]              História da Argélia: [http://caldwellgenealogy.com/pirates.html An article on the Barbarossa brothers], consultado em 17/01/2010

[12]              Gruzinski, S. Les hommes-dieux du Mexique. Paris: Archives Contemporaines, (1985).

[13]              Berbnand, C., Gruzinski, S., Histoire du Nouveau Monde, Les Métissages (1550-1640), Paris: Fayard, (1993): 33 e 638:

“Inca era o nome dado aos soberanos que reinavam num imenso território que ia do sul da Colômbia até ao rio Maule”, no Chile. Este termo que “designava elite dirigente de Cuszco, passou a aplicar-se, por extensão e impropriamente, às civilizações indígenas dos Andes aquando da chegada dos Espanhóis”

[14]              Vasari, Giorgio, Las Vidas de los más excelentes arquitectos, pintores y escultores Italianos              desde Cimabue a nuestros tiempos (Antología), Madrid, Tecnos, 1998: 58.

[15]              APPADURAI, Arjun, 1986: 6-13.

[16]              “The Convention on the Control and Marking of Articles of Precious Metals (also known under “Hallmarking Convention” or “Vienna Convention”) is an international treaty between Contracting States, which aims at facilitating the cross-border trade of precious metal articles. The scope of the Convention is strictly limited to the control of the precious metal content – not to health, security or other aspects of precious metals articles. States, which are party to the Convention, recognise that articles, which have been marked with the Convention “Common Control Mark” (CCM) and which are of a legal fineness, can enter their territory without additional control or marking. The number of CCM-marked articles has grown over the years – a sign that there is a demand for quality precious metals articles. (…)The Convention was signed by the following Members of the European Free Trade Association (EFTA) at that time: Austria, Finland, Norway, Portugal, Sweden, Switzerland and the United Kingdom. However, participation in the Hallmarking Convention was from the start open to other countries having the necessary arrangements for the assay and marking of articles of precious metals. The Convention has since been joined by Cyprus, the Czech Republic, Denmark, Hungary, Ireland, Israel, Latvia, Lithuania, the Netherlands, Poland, Slovak Republic, and Slovenia. Two other countries are presently in the process of acceding (Sri Lanka and the Ukraine) while others have shown an interest (e.g. Italy, Spain, etc.). A number of other countries (e.g. Romania) follow the work carried out by the Standing Committee on a regularly basis.” [http://www.hallmarkingconvention.org/index.php] consultado em 21/01/201

[17]              A partir da aderência, cada país estabelece normas internas, definindo, nomeadamente, se é, ou não compulsivo contrastar as peças. É conhecida a ambição da Comunidade Europeia, no sentido de regulamentar normas semelhantes no território da União Europeia. No entanto, será de prever que países poderosos como a Alemanha e a Itália – que não assinaram este Tratado – se oponham a aderir. Agem na base da confiança no fabricante, sendo a marca de responsabilidade a do comerciante, do produtor/fabricante ou a assinatura do artista. Estão em minoria, relativamente ao número de países da UE que já aderiram, mas, em ambos os países, sobretudo na Alemanha, a joalharia está associada a outros sectores económicos, culturais e educativos. Uns movimentarão avultadas somas, como as feiras, equipamento, ferramentas, galerias, comércio da especialidade,  ao mesmo tempo que nas muitas escolas e universidades se preparam futuros profissionais e, em museus e fundações, se divulga o passado e o presente de quem e o que constrói a história, nos vários âmbitos da joalharia (artística, design, acessórios de moda, alta joalharia).

[18]              Danto, Arthur, Después del fin del arte: el arte contemporáneo y el linde de la historia, Barcelona, Buenos Aires, México, Paidós, 1999.

[19]              Vasari, 1998: 66, 67.

[20]              CASTRO CALDAS, Manuel “O ponto e a linha de fuga: reflexões sobre a jóia, o signo, o desejo e o segredo, Conferências 4 Pontos de contacto – Lisboa e Roma, Museu Nacional de Arte Antiga, 29 Out 2006): [http://www.pin.pt/pin2/pdf/2005_4ptos_manuelcastrocaldas.pdf], visitado / arquivado em 2008.

[21]              Danto, Arthur, 1999.

 

{tortags,2641,1}

 

__