Manuel Castro Caldas,
O ponto e a linha de fuga
(reflexões sobre a jóia, o signo, o desejo e o segredo)
Certamente alguns dos presentes conhecem uma dessas minúsculas peças de Samuel Beckett (“dramatículos”, é como lhes chamam) intitulada “Come and Go”. Na edição inglesa original o texto dramático propriamente dito limita-se a 2 ou 3 páginas e, como é frequente no caso deste autor, estão incluídas, além de fotografias, uma série de instruções ultra-precisas para a encenação.
Resumindo pois o que já de si é sucinto, poder-se-ia descrever a peça do seguinte modo:
Três mulheres, de aparência semelhante mas que se deverão distinguir pelas diferentes cores - muito abatidas e neutras - dos casacos compridos que envergam, estão sentadas no palco lado a lado, numa espécie de banco que não vemos bem, de frente para o público. A cena é banhada por uma luz suave mas localizada e as mulheres usam chapéus que deixam as suas caras na sombra. Sentam-se perfeitamente direitas, com as mãos pousadas no colo.
A coreografia, tal como a própria acção e o texto, é minimal, como minimais são os nomes das mulheres - Flo, Vi, Ru -, possíveis abreviaturas de Florence, Violet e Ruth. Não sabemos verdadeiramente.
A tradução (livre…) é minha. Vi é a primeira a falar.
Vi: “Quando é que nos encontrámos as três pela última vez?”.
Ru responde: “Deixemo-nos estar em silêncio”.
Silêncio.
Vi levanta-se e sai de cena.
Quando isto acontece, Flo e Ru falam de Vi
Flo: “Ru”.
Ru responde: “Sim”.
Flo outra vez: “O que é que pensas da Vi?”.
Ru responde: “Vejo poucas mudanças”.
Então, Flo muda de lugar e aproxima-se de Ru e murmura qualquer coisa ao seu ouvido que nós não ouvimos. Ru solta uma interjeição de surpresa, ou de choque: “Oh!”.
Olham uma para a outra, Flo leva o dedo aos lábios em sinal de segredo e pergunta: “Ela não sabe?”
Flo responde: “Deus permita que não”.
Vi regressa ao centro do palco e as 3 voltam às suas posições frontais. Vi senta-se no lugar deixado vazio por Flo e Flo diz: “Deixemo-nos estar aqui sentadas, juntas, como costumávamos fazer no recreio da Miss Wade”. Ru acrescenta: “No tronco”.
Desta vez é Flo que se levanta e sai e o ciclo retoma-se, numa alternância da presença em cena dos grupos de 2 ou de 3 mulheres, com as trocas de lugares, os segredos ditos ao ouvido sobre aquela que acabou de sair, o “Oh!” de surpresa, etc.
Isto sucede por 3 vezes consecutivas, até se completar a ronda.
Nas instruções de cena, Beckett indica expressamente que a voz das mulheres deve estar constantemente no limite da audibilidade, com excepção dos três momentos precisos em que as mulheres respondem ao segredo sussurrado ao seu ouvido com um “Oh!” de surpresa ou de choque, e ainda nas frases que se lhe seguem, do tipo “Ela não sabe? Deus permita que não”. Nos intervalos, o registo de voz regressa à neutralidade e quase-inaudibilidade.
Finalmente as três mulheres estão sentadas de volta.
Vi diz: “Não podemos falar dos velhos tempos? (silêncio) Do que veio depois? (silêncio) Vamos dar as mãos à maneira dos velhos tempos?” E as três dão as mãos, que desenham como se fossem 3 triângulos entrelaçados.
Flo fala por último e diz: “I can feel the rings” (“sinto os anéis”, ou “consigo sentir os anéis”).
Silêncio.
Cai o pano.
Ainda nas instruções de cena fornecidas por Beckett podemos ler: “no rings apparent” (“sem anéis à vista” ou “nenhuns anéis à vista”).
O que retivémos, afinal, do desta acção minimal?
Antes de mais, que a informação veiculada nas intervenções dos personagens é manifestamente insuficiente para nos esclarecer sobre seja o que for, quanto mais sobre a natureza do segredo dito ao ouvido de cada uma. Todo o jogo é críptico, surdo, não sabemos se motivado pelo conteúdo (desconhecido) do segredo, se causado pela sua real inexistência (ou irrelevância).
Quando o tom de voz das mulheres se altera – perante a revelação do segredo – já o conteúdo passou, para o espectador, do dificilmente audível ao absolutamente inaudível. E quando a audibilidade volta, o regime monocórdico e quase-inaudível volta com ela, para providenciar informação neutra, vaga, incompleta: a sugestão de um passado em comum, algo como uma solidariedade (mas será este o termo?...) entre as três mulheres, a ideia de qualquer coisa de chocante ou de menos bom que aconteceu (recentemente? no passado?). Não sabemos.
A linguagem foi comprimida, concentrada e reduzida a uma série de pontuações formais (as unidades discursivas pontuais que são as intervenções faladas). A esses pontos outros se vêm juntar: os silêncios, os movimentos de entrada e saída, de mudança de postura, tudo altamente regulamentado.
É como se tudo se passasse ao longo de duas linhas, que se entrelaçam e compensam - uma de explicitação e diferenciação e outra de sintetização, neutralidade, formalização. Melhor: é como se uma linha de formalização ritual viesse instalar, desde o início, um mecanismo que duplica e absorve a linha de explicitação, a linha da expectativa e do conteúdo. De cada vez que uma linha narrativa se vai compor, ou parece poder compor-se, a segunda linha vem substituir o seu movimento - o caminhar para uma revelação - por um jogo de velocidades erráticas, um ziguezague de acelerações e abrandamentos, culminando nessa espécie de divagação que tudo deixa em suspenso – “I can feel the rings”.
À medida que o conteúdo se revela ele revela a sua afasia, a sua pobreza. Mas esta é compensada por uma riqueza da formalização, por uma espécie de desenho abstracto que tudo une e leva consigo (discurso, movimentos, a cinética e a estática, o som e o silêncio…).
Ao longo do percurso, diríamos que o segredo se altera enquanto modalidade. Um conteúdo escondido, por cuja revelação esperamos em vão, é ritualmente dissolvido numa geometria ligando pontos heterogéneos.
Numa espécie de “segunda vida”, o segredo desloca-se do conteúdo para a forma, transforma-se em forma. Crucial nesta transformação é essa frase final – “I can feel the rings”. Efectivamente, é a partir dela - ponto final no final de uma série de pontos, fecho e termo da acção - que se produz retrospectivamente, sobre todo o evento, um efeito-segredo. Simultaneamente, ela é também o elemento que activa a linha que os une, linha de deriva como a própria frase é deriva.
Esses anéis - seriam alianças? Todo ao longo da peça, não há jamais menção de homens - é um mundo de mulheres? Teriam as mulheres sido casadas? Teriam sido felizes? E agora já não são? São solidárias na felicidade do passado, na infelicidade do passado? Do presente? Serão solidárias de todo (já que um segredo se insinua entre elas também - não só entre elas e nós)?
Quando os dedos sentem os inexistentes anéis e a peça termina, percebemos que toda a sua economia é secreta, que os conteúdos secretos foram duplicados em forma e o não-saber nos foi devolvido como positividade – experiência, realidade.
Quando os dedos sentem os inexistentes anéis e o dizem a experiência do segredo torna-se num drama meta-cinético, jogo interior de deriva - velocidade. Ele nasce para nós e nós para ele num vazio formal que nos move (isto é, nos tira de onde estávamos...). A nós, espectadores, é-nos dada uma vida (essa que foi negada às três mulheres?).
Os anéis não são nem simples objectos nem objectos simples - já o adivinhávamos…. E eis aqui como - catalizadores – eles despoletam o movimento ao longo da linha abstracta, libertando o desejo para o abstracto arabesco de um desenho.
Não é correcto dizer que os anéis não existem, mas sim que eles existem secretamente, inseridos na linha de fuga traçada a partir do não-saber, via da (sua) experiência positiva.
Nas entrelinhas, associei já esta peça de Beckett a um outro texto, esse filosófico, onde se fala ainda de segredo, de mulheres, de velocidade. Trata-se de uma reflexão sobre a natureza do segredo, feita por Gilles Deleuze e Félix Guattari num famoso capítulo de “Mille Plateaux” intitulado “Devir-Intenso, Devir- Animal, Devir-Imperceptível…”).
Esperando provar que o humor do texto não é inferior ao seu poder analítico, passo a citar uma passagem:
“(...) as mulheres não têm de todo a mesma maneira de tratar o segredo (salvo quando elas reconstituem uma imagem invertida do segredo viril, uma espécie de segredo de gineceu). Os homens reprovam ora a sua indiscrição, o seu palratório, ora a sua falta de solidariedade, a sua traição. E no entanto é curioso como uma mulher pode ser secreta sem esconder nada, à custa de transparência, de inocência e de velocidade. (...) Celeridade contra gravidade. Celeridade de uma máquina de guerra contra a gravidade do aparelho de Estado. Os homens adoptam uma atitude grave, cavaleiros do segredo, “vejam que carga eu sustento, vejam a minha gravidade, a minha discrição”, mas acabam por dizer tudo, e não era nada. Há mulheres que, pelo contrário, dizem tudo, falam mesmo com uma assustadora tecnicidade, acabaremos por não saber mais no fim do que no início, elas terão escondido tudo à custa de celeridade, de limpidez. Elas não têm segredo porque se tornaram elas próprias num segredo.
É aqui que o segredo atinge o seu último estado: o seu conteúdo é molecularizado, tornou-se molecular, ao mesmo tempo que a sua forma se desfaz para se tornar uma pura linha que se move - no sentido em que se pode dizer de tal linha que ela é o “segredo” de um pintor (...) o “segredo” de um músico”.
Penso ser claro que Deleuze e Guattari não estão a tentar aqui caracterizar as mulheres, tal como eu não estou a sugerir que a Joalharia são anéis ou que a Joalharia é coisa de mulheres.
Estou a sugerir que, nas artes, isso que chamamos “composição” (ou qualidade, visto que não há verdadeira arte sem composição), tem a ver com a transformação de um signo que apela ao desvendar dos seus conteúdos num outro tipo de signo cuja economia é secreta e apela a ser experienciada secretamente.
E estou ainda – por inferência – a dizer que um anel pode fazê-lo tão bem ou tão mal como qualquer outra coisa, que a questão, em suma, é uma questão de estilo e de velocidade, uma questão da modalidade do segredo.
“Anéis” é aqui a palavra simbolizando esta figura de composição implicando concentração, intensificação, dispersão e formalização ritualizadas a partir de um ponto.
O que é, na verdade, um ponto sem um dedo que aponta?
Na Joalharia (e agora falo evidentemente da joalharia contemporânea, liberta das retóricas do poder), algo é sempre transformado num ponto que aponta de volta – sinalizando uma inteligência diversa daquela com que nos depararíamos na sua ausência, conferindo ao todo onde escolhemos o que apontar um significado alterado, modificado. É isso um apontamento – quase nada, mas uma nota, uma reflexão, uma inflexão. Um corpo, uma situação, um mundo, recriam-se nesse detalhe, são por ele arrastados para um singular jogo de velocidades – um estilo – onde a natureza da comunicabilidade se revela inseparável do desejo, impensável sem o desejo, sem o não-saber.
Roland Barthes descreveu, melhor que ninguém, este mecanismo da jóia moderna, democrática: “A jóia é um nada, mas deste nada emana uma muito grande energia. (…) a jóia reina sobre o vestuário, não porque é absolutamente preciosa, mas porque concorre de um modo decisivo para o fazer significar: é o sentido de um estilo que é doravante precioso, e esse sentido depende, não de cada elemento, mas da sua relação, e nessa relação é o termo destacado (um bolso, uma flor, um foulard, uma jóia) que detém o último poder de significação”.
Onde a jóia de poder – a jóia pré-moderna de estatuto e ostentação –, confirmava, acentuava e precisava ou exorbitava no detalhe o sentido de uma ordem, tornando-a mais evidente e obrigatória, a jóia democrática confirma, acentua e produz deriva, declina a ordem-signo a partir do detalhe.
Como todas as outras disciplinas artísticas que questionaram os seus limites estritos e as suas fronteiras rígidas, a Joalharia também passou a falar a partir do lugar onde não quer estar ou não pode estar e, fazendo isto, passou a assinalar esse lugar deslocado ou, melhor ainda, a deslocá-lo incessantemente consigo. Onde o anel habitava o dedo do monarca, é o monarca que habita hoje, abstractamente, o anel - e é monarca quem habita o anel.
Arriscando prosseguir com a ajuda de mais nomenclatura deleuziana, dir-se-ia que a Joalharia, como de resto todas as artes, serviu sempre dois tipos de corpos: os corpos do “aparelho de Estado”, com a sua pompa pública, e os corpos da”máquina de guerra”, que chegam em segredo, amam em segredo, partem em segredo. Ao movimento dos primeiros corpos (e do topos guerreiro do seu sentido) a Joalharia contemporânea obsta com a mobilidade, a celeridade e a imperceptibilidade dos segundos.
Abraça-se a memória, o método, o craft de um presente que já não é o nosso, de um solo que já não é o nosso, arrastando-os e modificando-os no movimento a que estamos, enquanto modernos, condenados. É como escrever apagando o fundo no qual letras e palavras se destacariam.
Naturalmente que um fundo permanece, em permanente deslocação, tal como os lugares da memória e do método, sempre mais longe. Esta distância passa a integrar o legível, mas um legível que assinala do seu interior um desejo de ilegibilidade, a prova de que o mundo está “fora dos gonzos” e de que o Homem não possui solo “próprio”. As tradições modernas são tradições de fuga, tradições (como alguém disse…) de investigação da quantidade de ilegibilidade que se pode inserir no legível, arrastando o solo a partir daquilo que sobre ele se destaca.
Signo em deslocação, que é ele próprio “dar a pensar”, velocidade da fuga a partir do já pensado, pensamento.
O que é afinal um anel – uma jóia? Um signo emitido à margem do todo e que nele cria uma margem de segredo afectando, não o que é escondido, mas o que é mostrado.
Acrescentavam ainda Deleuze e Guattari: “Haverá sempre uma mulher, uma criança, um pássaro para se aperceber secretamente do segredo.”
* O presente texto é uma versão editada da comunicação proferida pelo autor no Museu Nacional de Arte Antiga, a 29 de Outubro de 2006, no âmbito da iniciativa “4 Pontos de Contacto – Lisboa e Roma”, dedicada à Joalharia contemporânea de autor.